CAPITALISMO DE BAGACEIRA.
FILOSOFÊNCIAS DE UM PROFETA QUE DESCEU DO MORRO
JESSÉ, O PROFETA QUE DESCEU DO MORRO PUTO DA VIDA E PASSOU A FILOSOFAR
MOBILIDADE SOCIAL E CONSCIÊNCIA DE CLASSE À BRASILEIRA: NÃO LUTA DE CLASSES, MAS VIRAR ELITE
CAPITALISMO DE BAGACEIRA: A VARIANTE BRASILEIRA DO CAPITALISMO
ESQUERDA E DIREITA, CONCEITOS INSUFICIENTES PARA UMA REALIDADE MULTIDIMENSIONAL
O CAPITÃO TOLETE NA MITOLOGIA DE BRUZUNDANGA
JESSÉ, O PROFETA QUE DESCEU DO MORRO PUTO DA VIDA E PASSOU A FILOSOFAR
Jessé não desceu da montanha, como o Zaratustra de Nietzsche, após dez anos de meditação solitária, mas resolveu descer do morro para também compartilhar sua sabedoria, puto da vida, num bar da primeira esquina que encontrou no asfalto.
Indignado e consciente do colapso da humanidade, passou a proferir filosofências do alto da sabedoria de quem ralou sua existência de mais de cinco décadas, bem informado, crítico e opinativo sobre os dramas da existência.
Sofrente e pensante, Jessé entrou na universidade adulto de meia idade, após o ENCCEJA, e passou a discorrer e teorizar à sua maneira sobre Sociologia, Ciência Política, Economia e História, com ares de filósofo da periferia urbana, para quem quisesse ouvir na calçada do bar. Seu público no começo eram frequentadores habituais, incluindo bêbados e garçons, mas com o tempo sua fama cresceu, entre curiosos e discípulos.
Ganhou a fama de profeta, além de filósofo. Nunca escreveu nada, como alguns dos grandes homens da História: os registros a seguir foram feitos por Jô, estudante universitária do Prouni. No começo, ela pensava em fazer seu TCC sobre filosofia de bar, mas à medida que a coisa se tornava séria passou a escrever os ensinamentos de Jessé por piedade das gerações vindouras, atrofiadas intelectualmente, incapazes de pensamento próprio, crítico, e produção de textos sem o auxílio do Chat GPT.
MOBILIDADE SOCIAL E CONSCIÊNCIA DE CLASSE À BRASILEIRA: NÃO LUTA DE CLASSES, MAS VIRAR ELITE
– O problema do Brasil é a parte da ralé escrota que quer se tornar elite escrota. Todos olharam para o Jessé, puto, sentado na mesa com uma cerveja e um jornal, e caíram na gargalhada.
– O problema do Brasil não é a parte escrota da elite, continuou, indignado. O problema é a parte escrota da ralé. Claro que eu não tô falando dos trabalhadores duros, das donas de casa, dos pais de família que derramam seu suor, dos jovens que ralam para estudar e trabalhar. Tô falando daqueles pobres de direita que em vez de lutarem por uma sociedade mais justa, com direitos iguais para todos, de forma organizada, querem virar parte da elite escrota. O negócio dessa gente é se dar bem, o mais rápido possível, de preferência subindo no pescoço dos outros.
Os amigos do bar continuaram olhando para ele. Alguns continuavam rindo do rompante, outros queriam ouvir mais. Ele falava sério.
– Essa parte do povão conhecida como pobres de direita não tem inveja da elite. Tem admiração e respeito. Quer ser como ela. O mais rápido possível. Não importa como. Inclusive abandonando tudo o que foi, como nasceu, seus amigos, sua comunidade, suas raízes. Os pobres de direita não se revoltam contra as causas da injustiça social, nem vêem os ricos como responsáveis por ela. Eles admiram tanto os ricos que querem se tornar rapidamente como eles, com os mesmos privilégios. Por isso, não querem mexer nos privilégios de classe da elite, porque acham que um dia vão gozar deles, também, mantendo as diferenças de classe. Sonham que um dia vão ser milionários, e ao chegarem lá, querem usufruir de tudo. Uma utopia patética, porque o sistema sempre vai impedir que eles cheguem lá!
Agora ninguém mais ria. Todos se calaram, assustados com o rompante sociológico do Jessé. Ele estava lendo um jornal na mesa do bar. Leu alguma coisa que havia mexido sério com ele. Todos descansaram os copos nas mesas. Até a roda de samba fez silêncio para ouvir a palestra que se anunciava.
– E a consciência de classe, Jessé? – perguntou Engles, um sindicalista de camisa vermelha desbotada. O nome dele tinha as letras trocadas porque o escrivão do cartório era disléxico.
– Os pobres de direita têm hiperconsciência de classe. Não é que não tenham consciência da classe a que pertencem e sejam alienados do abismo social. Não são nada alienados, sabem que pertencem à classe pobre, mas querem escapar dela do jeito que der e o mais rápido possível. A consciência de classe deles não faz com que tenham solidariedade com os da mesma condição social e lutem junto com os excluídos, trabalhadores e proletários contra o sistema opressor. Faz é quererem subir na vida por conta própria e dar banana para os que continuam na lama.
– E a luta de classes? – insistiu o sindicalista, preocupado.
– Esse é um delírio utópico marxista. Nunca vai pegar prá valer no Brasil, porque o pobre de direita não quer retirar, socializar ou corrigir os privilégios da elite. Não é luta de uma classe contra a outra e contra o sistema, é a luta individual dos lascados contra sua própria condição para subir de classe, sem mudar o sistema. Pegando o elevador privativo rápido, em poucos anos, enquanto todo o resto sobe de escada. De preferência sem esforço, sem estudo, sem trabalho penoso. Vale trapaça, corrupção, crime, tudo o que puder acelerar o elevador. Essa galera escrota quer manter a distância social. Quer subir na vida, virar rico e famoso, para fazer inveja aos seus pares, e esses que se fodam.
– E a organização social, a luta pelos direitos?, insistiu o sindicalista, muito incomodado.
– Pois é, na visão da esquerda histórica, sindicalista, o povo é demandante de direitos, precisa se organizar para reivindicar seus direitos e arrancar isso da classe dominante. Porque nanhum direito é dado de mão beijada, né? Para isso, valem todos os instrumentos, pressão social, greves, e tudo o mais. Mas o pobre de direita não tem tempo nem vontade de fazer pressão social por meio da luta coletiva, da mobilização de categorias, da mudança do sistema e tal.
– Pois é, quem é contra a esquerda ou os sindicatos deveria ser coerente, e não usufruir de nenhum dos benefícios alcançados pela luta social, como o salário mínimo, o décimo terceiro, as férias, comentou um dos que assistiam.
– Como é que essa parte dos pobres de direita fazem, então, para subir na vida rápido, e para conquistar os privilégios da elite?
– Eles são arrivistas, hiper individualistas, ultracapitalistas, não querem mudar o sistema, querem chegar na cobertura do prédio sozinho, por conta própria, no elevador privativo da elite, que só tem um botão que leva para o andar de cima. Não se preocupam com a solidariedade social, nem com os outros, nem querem mudar a sociedade, nem o sistema.
Francinelson, o dono do bar, aproximou-se da mesa para entender o motivo da cena. Gostava dos rompantes irado-filosóficos do Jessé, porque atraíam mais clientes. Limpando um copo que continuava sujo, porque o pano era o mesmo da semana passada, postou-se atrás do filósofo para ver a manchete do jornal que tinha originado a explosão.
“Fazendeiro milionário preso por trabalho escravo nasceu na favela”, era a manchete.
– Quem é esse daí, Jessé?
– Se lembra do Toninho, filho de Dona Divina, a crente lá do morro?
– Claro, conheço ele desde moleque. A mãe dele ralou prá caramba para ele estudar e ter uma vida decente lá no morro, forçava ele a ir para a igreja, mas ele sempre queria se meter com a galera rica da Zona Sul.
– Um ferrado, mas pensava alto, queria virar rico de todo jeito, completou Zezão, na mesa do lado. Jogava bola com ele, o cara era um pereba. Um moleque esperto, de uma família pobre prá cacete, mas ele se achava o tal. Queria viver de aparência, inventava histórias mirabolantes só prá frequentar lugar chique. Inventava história prás gatinha burguesinha, dizendo que ia jogar no juvenil do Barcelona. Mas na hora de pagar a conta, arranjava um jeito de sumir, saia para atender o celular ou dizia que tinha esquecido a carteira no carro.
– Carro porra nenhuma, lembrou Marquinhos, rindo, ele andava de busão mesmo. Dois busão para chegar a qualquer ponto da Zona Sul.
– Faz anos que não vejo aquele bosta, continuou Zezão. Ele foi prás banda do Norte, da Amazônia, disse que ia virar garimpeiro e depois o rei do gado.
– Esse mesmo, retomou Francinelson. Tá até me devendo uma conta aqui. E que aconteceu com aquele bosta?
Jessé levantou o jornal como uma espada, brandando sua indignação.
– Esse bosta do Toninho da Divina virou agora Tony do Rodeio!
Gargalhada geral.
– Tá de sacanagem!, vários reagiram.
Jessé resumiu a matéria do jornal:
– Apois o Toninho – agora Tony do Rodeio – virou garimpeiro na Amazônia, cagou mercúrio em um monte de rio de lá, se envolveu com invasão e grilagem de terras indígenas, fudeu com muita floresta, tinha escravos de dívidas, entrou no contrabando de ouro para o exterior, abriu uma casa de putaria com tráfico de índias, se meteu com políticos de ultradireita de lá, regularizou um monte de terra grilada no nome dele depois de pagar muita propina para juízes e políticos corruptos e virou o rei do gado. Como queria. “Venceu na vida”, concluiu fazendo as aspas com os dedos, e depois deu uma dedada para a foto no jornal.
Silêncio na plateia do bar. Todos demoraram a assimilar aquela massa de surpresas. O cara tinha de fato subido rápido na vida. Virou garimpeiro e rei do gado, entrou no clube exclusivo da parte escrota da elite.
– Dane-se, e nóis com isso?, alguns reagiram.
A roda de samba começou a tocar “você merece” (Comportamento Geral), do Gonzaguinha. Quase todos se acalmaram, num misto de reflexão, resignação e indiferença, e voltaram a beber e cantar. Alguns ficaram imaginando o Tony do Rodeio com chapéu de caubói e a bandeira americana, cavalgando na abertura de um rodeio em Barretos, ou dançando o bumba em Parintins. Quem sabe viraria tema de samba enredo? Ou desfilaria na Paulista com a bandeira americana no Sete de Setembro?
Jocicleide (Jô), faxineira e estudante universitária do Prouni, entrou no bar e estranhou a tensão do ar, mesmo com a música.
– Que é que tá rolando aí? Que climão é esse?
Todos olharam para o Jessé. Ele é quem devia explicar o climão. Mas, concentrado de novo na matéria, não notou que estava sendo convocado para esclarecimentos mais detalhados na comissão de inquérito popular da calçada.
– Diga aí, Jessé, continuou Jô. Depois que você entrou na universidade, depois de velho, sempre traz prá cá uns assuntos meio complicados. Essas coisas que você está estudando tão pirando a galera daqui. Qual é a sua de hoje?
Jessé se endireitou na cadeira, como se fosse dar uma palestra para calouros universitários. Repetiu seu argumento central.
– O maior problema do Brasil é a parte da ralé, sociologicamente conhecida como pobres de direita, quer se tornar elite. O problema não é só a parte escrota da elite. No Brasil, a elite só consegue se manter porque o povão dá apoio a ela e quer ser como ela.
– Como assim?, quis saber mais Jô.
– Outro dia li um livrinho muito fera chamado “Discurso da servidão voluntária”. Erasmo de Rotterdam é o autor, nunca tinha ouvido falar dele. Ele explica que os caras que mandam só conseguem mandar porque tem gente que aceita obedecer, não questiona, não luta pelos direitos.
– Uai, então só existe o autoritarismo e o sistema de privilégios porque tem gente que aceita o regime?
– Pelo menos eles se mantêm mais fortes quando os subordinados aceitam sua condição sem reclamar. Melhor ainda quando querem se tornar ricos de qualquer jeito, na base do cada um por si, sem mudar o sistema.
– Você está falando da inveja que os pobres têm dos ricos?
– Não inveja, mas admiração, desejo de ser como eles sem questionar as razões da injustiça social. Quantos de vocês têm inveja dos ricos?, tentou sondar Jessé empiricamente, numa pesquisa de opinião sumária sem rigor metodológico.
Dois ou três levantaram a mão, mas o restante, de forma atabalhoada, coincidiu na visão de que queriam ser ricos mesmo, com todos os privilégios. Tinham mais admiração que inveja. Queriam ser celebridades com iates, fazendas, viagens para Miami, jatinhos, festas em palácios, milhões de seguidores e likes nas mídias sociais…
– Nenhum problema em querer ser rico, claro!, tentou tranquilizar Jessé, receoso de alguém que gritasse “comunista, petista, vai prá Cuba” e outras categorizações com a marca de refinamento da ultradireita. O problema é a injustiça social. Concentração de renda. Desigualdade no acesso à educação, saúde, habitação, saneamento, bens culturais, falta de oportunidades profissionais etc.
Jessé, teatral, empinou o nariz, balançou um guardanapo de papel e imitou gestos chiques de pobres de direita aspirantes à elite:
– Quero ir para a cobertura do prédio o mais rápido possível participar daquela festa chique. Só não fui convidado porque aquela gente ainda não me conhece. Na minha cabeça eu pertenço àquele grupo, e tudo farei para defender os direitos deles, dos ricos, porque também serão meus direitos, no dia que eu chegar lá no clube dos milionários. Defender os privilégios dos ricos é defender gente que eu admiro, não invejo, e um dia serei como eles.
E, com um olhar de decepção para a sarjeta na calçada, arrematou:
– É esse, nosso nível de solidariedade e consciência de classe. Não tem como dar certo, um país assim, com esse nível de solidariedade.
– Tinha um economista – lembrou um senhor grisalho – chamado Roberto Campos, conhecido como “Bob fields” por seu pensamento americanizado, que disse uma vez que o Brasil era um país previsível: não tem nunca como dar certo…
Jessé concluiu, categórico:
– O capitalismo no Brasil é um capitalismo de bagaceira.
Eita, agora a coisa ficou mais séria. O profeta subiu o tom conceitual e cunhou nova categoria analítica: capitalismo de bagaceira! Até a música parou de novo. Todos exigiram explicação sobre esse conceito inédito.
Jô tomou seu caderninho de notas. Quem sabe aquele papo poderia virar um TCC? Ela estudava à noite jornalismo, e de dia trabalhava como faxineira para pagar. Lembrou-se das aulas de introdução à Ciência Política, que só passou a duras penas porque entregou um trabalho escrito com a ajuda do Chat GPT. O professor, sem recursos nem tempo, não tinha o aplicativo que reconhecia plágios dos plágios digitais, e ela se deu bem. Para o TCC, Jô tinha planos de pagar um daqueles que escreviam dissertação, prá facilitar a vida. Queria a todo o custo o canudo, não importa como. Mas aquela conversa lhe deu vontade de escrever por conta própria, sem Chat GPT nem terceirizando a autoria da dissertação.
CAPITALISMO DE BAGACEIRA: A VARIANTE BRASILEIRA DO CAPITALISMO
Jessé aceitou o desafio, levantou-se da cadeira e começou a lecionar, entre pausas de busca de melhor fraseamento, que só aumentavam a tensão e o interesse do público na calçada do bar.
– O capitalismo brasileiro é sui generis.
Alguns protestaram, acharam que ele ia descambar para um discurso sobre gênero usando o sufixo do Mussum… Mas ele prosseguiu, parafraseando o grande Profeta – “Quem tem competência para ouvir, ouça” –, mas perdeu a paciência e completou – “os outros não me atrapalhem”.
– O capitalismo brasileiro é sui generis. É predatório e triturador. Um sistema de apropriação, produção e consumo predatório e triturador de todos os meios e recursos naturais e humanos. Como ave de rapina ou o bicho do mato mais feroz, traiçoeiro e ruim, que mata por prazer, esfola, chupa o sangue ou o suco só prá si e deixa o bagaço e a carcaça no chão, apodrecendo e sujando a paisagem, metendo medo em quem achar ruim e quiser confrontar. Mais depreda e destrói do que constrói, mais tritura do que planta. Uma máquina de apropriação gigantesca insaciável que mói gente e natureza, e só deixa a bagaceira no chão, depois de ter chupado tudo. E vai para outro lugar, deixando a terra e a gente arrasada, para continuar fazendo o mesmo processo de usurpação, destruição, apropriação dos ganhos e deixar destroços e bagaço. O capitalismo de bagaceira é sistema que não tem como dar certo e ter futuro, é insustentável, sempre vai levar ao colapso e à destruição para o benefício de uns pouquíssimos e o rastro de desastre para todo o resto.
– Caraca… Ferrou geral… Muitos reagiram assustados. Jessé continuou, andando de um lado para o outro.
– Podem ver a História do Brasil, desde a chegada dos brancos europeus “civilizados”. O Brasil passou pelos ciclos do pau-brasil, do açúcar, do ouro, e vários outros. Cada ciclo econômico era um ciclo de apropriação e depredação para extrair a maior riqueza possível para o menor grupo de gente, e o resto que se lasque. Nessa máquina gigantesca de moer, foram trituradas nossas florestas, milhões e milhões de hectares, foi triturada nossa gente, milhões e milhões de índios, escravos, trabalhadores, foi destruído nosso meio ambiente, com poluição nos rios, no solo, no ar, nas montanhas, tudo isso para extrair madeira, minérios, produzir para o consumo de luxo dos europeus e norteamericanos coisas como tinta vermelha, açúcar, café, tabaco, chocolate, joias… Mais recentemente, minérios para a indústria dos ricos, grãos para os porcos e as vacas de lá. Sem falar na corrupção do grande capital nesse mundo subdesenvolvido, que nada tem a ver com os delírios de meritocracia e da livre concorrência.
Parou, reflexivo e teatral, na porta da frente do bar, iluminado pelo poste da esquina.
– E o que sobrou depois que todo o suco do extrato da natureza e todo o sangue dessa massa humana foram chupados? Bagaço! Por isso nosso capitalismo é um capitalismo de bagaceira!
Aplausos. A conclusão foi recebida com aplausos e assovios entusiasmados.
– É isso mesmo, porra!
– Viva la revolución, gritou um gaiato.
Abriu-se a sessão de debates. As intervenções dos populares não propunham contraditório, mas demonstravam desejo de aprender mais. Um dos assistentes provocou, indignado:
– No capitalismo brasileiro, o que vale não é só vencer, o concorrente tem que se ferrar.
Todos riram, concordando efusivamente.
– É o capitalismo da sacanagem, outro contribui para o com refinamento conceitual.
– Isso tem a ver justamente com o que eu dizia, concordou Jessé: subir o elevador social privativo, empurrando todo mundo pela escada ou pela janela. Não tem como dar certo, um sistema capitalista desse jeito, predatório, triturador, exclusivista e excludente.
– E o meio ambiente, Jessé?, perguntou outro. Como fica o meio ambiente nesse capitalismo predatório de bagaceira?
– Tá na mesma lógica predatória. As elites se apropriam das árvores, do solo, do subsolo, dos minerais, dos rios e do lençol freático, poluem, contaminam, despejam resíduos e substâncias tóxicas, fumaça, desmatamento, tudo para um sistema capitalista de produção e consumo desenfreado e insustentável, tudo para gerar lucro para a parcela detentora da posse e usufruto dos recursos naturais e do capital humano. Depois, tudo vira bagaço, carcaça, sujeira, poluição, esgoto, fuligem, gás carbônico.
– Verdade…
– Dizem que o Brasil é o país da natureza, nosso imaginário sempre evoca as belezas da natureza e tal, mas eu pergunto: quem de vocês aqui tem contato com a natureza?
Silêncio. Fora um ou outro pé de mato das frestas das calçadas mal feitas ou do terreno baldio e sujo, poluído e dos lixões, ninguém tinha contato com essa tal natureza.
– 90 % dos brasileiros vivem nas cidades, em péssimas condições, sem contato com a natureza. Vivemos no asfalto, no cimento, nos engarrafamentos, na fumaça das chaminés, no barulho infernal dos carros. Quem viu pela última vez um ninho de pássaros, ou sequer mesmo umas andorinhas voando, fora os pombos que infestam as praças como ratos voadores? Quem tem umas plantinhas em casa, ou uma hortinha?
Mais silêncio.
– Quem sentiu pela última vez o cheiro perfumado da mata, especialmente quando bate aquela chuva?
Os mais velhos se lembravam de quando eram crianças, nos terrenos baldios ou nas várzeas. Hoje, tudo estava urbanizado, sem verde, sem vida, sem parques, sem cheiro e barulho de natureza. O ser humano estava afastado de seu habitat natural, e isso o tornava ainda mais deprimido.
– Gosto muito do Ailton Krenak, em suas “ideias para atrasar o fim do mundo”. Ele mostra que não somos separados da natureza, somos natureza. E que o rio Watu, que os brancos chamam de Rio Doce, em Minas Gerais, tem vida, e sofre, e tem medo do homem. Aquela mineradora que destruiu o rio e suas florestas ao redor para produzir minério, e terminou derramando um monte de material poluente rio abaixo, até o mar, depois que a barragem estourou. Um tsunami causado pela porcaria da ação humana. Até agora não deu em nada, ninguém foi punido, e a empresa continua lucrando como se nada tivesse acontecido…
Jessé passou para o campo da política, que viabiliza todo esse desastre ambiental.
– E a política ambiental? Como fazem nossos digníssimos representantes parlamentares, fazendeiros e donos do agro? Nas eleições, as queimadas e os desastres ambientais que acontecem todos os anos não fazem parte da agenda.
– E todos os anos crescem as queimadas, as geadas, as enchentes, já tem até pequenos furacões, alguém comentou.
– Mais grave ainda, prefeitos, vereadores, governadores e parlamentares desmatadores, criminosos ambientais, com milhões de multas não pagas, grileiros etc. não somente são eleitos, como lideram a agenda anti-ambientalista, para desregulamentar e desmatar e poluir sem qualquer restrição.
– É a história de “passar a boiada”, como disse aquele ex-Ministro do Meio Ambiente condenado pela exploração ilegal de madeira, lembrou outro.
– Exatamente, continuou Jessé. No São João, vídeos e fotos mostram festas e quadrilhas alucinadas contra o pano de fundo de queimadas no horizonte, e ninguém tá nem aí. O povo continua adorando e adulando os destruidores do meio ambiente, votando neles, querendo ser como eles, ricos.
– E bregas! Revoltou-se um senhor idoso, com critério estético. Tem até um estilo novo, greco-goiano, tem que ter alguma escultura de gesso na casa desses novos ricos, sem nenhuma noção do que foi a Grécia Antiga, completou.
– Como disse aquele vilão do filme Matrix, nós somos um câncer para o Planeta, lembrou um dos jovens da plateia, em uma das mesas do canto.
– Olha que a natureza é vingativa, comentou outro, recorrendo à propopopeia. Ela sente o golpe, se retrai, chora, ferida, mas se refaz, volta mais forte, vinga-se e dá o troco. E a natureza sempre é mais forte do que o homem, ela sempre vai vencer no fim. O planeta vai sobreviver, mas a espécie humana, não sei não.
– Aquele filme Avatar mostra isso mesmo, recordou outro jovem.
– Nós não merecemos esse planeta, concluiu uma senhora idosa, de forma escatológica. Por isso, seremos vomitados dela no Juízo Final.
– É o capitalismo de bagaceira, findou mais um da plateia da calçada, assimilando a mensagem. Destruímos tudo de forma alucinada, para produzir e consumir sempre mais, numa espiral infindável, que para se manter precisa sempre continuar destruindo até não sobrar nada. É assim que se comportam as células cancerígenas, é assim que se comporta a humanidade com a natureza.
ULTRADIREITA CONTRA DEMOCRACIA E HUMANISMO. A MESMA BATALHA CONTRA DIREITOS DO POVO ATRAVÉS DO SÉCULOS
– Os ultradireitistas e fascistas de hoje seriam anti-revolução francesa no século XVIII, e anti-democracia, anti-liberalismo e anti-abolição dos escravos no século XIX.
Jessé amanheceu inspirado. Começou com essa frase categórica a preleção no bar, enquanto o pessoal se preparava para a feijoada.
– Como é que é?, vários perguntaram surpresos, mas animados com a aula do dia.
– Isso mesmo. Esses ultraconservadores da extrema direita de hoje e sua cruzada anticomunista (para eles, tudo que beneficia o povo é comunismo ou marxismo, mas não sabem explicar o que isso significa) não têm nada de novo. São a mesma gente que nos séculos passados demonizava as ideias e as políticas de progresso social.
– É só mudar os rótulos e os embrulhos, mas no fundo a mercadoria é a mesma, né?, concluiu dona Iara, vendedora de cosméticos, frequentadora assídua das falas de Jessé.
– Boa imagem, dona Iara, concordaram. Mas explique mais isso, Jessé.
– Vamos recuar aí uns cinco séculos, época do Renascimento.
– Eita, essa é legal, animou-se Larissa, adolescente, que se lembrou das aulas de História.
– Pois é, continuou Jessé. Naquela época, na Europa, houve um movimento para colocar as pessoas no centro das ideias e da sociedade. O humanismo. O antropocentrismo. Não mais a igreja, a teologia.
– E também teve o progresso das ciências, não é?, completou Larissa.
– Exatamente. As ciências também passaram a ocupar um lugar central. Não bastava mais a especulação filosófica abstrata, o escolasticismo dos monastérios. O importante era que as coisas fossem explicadas ou feitas pela lógica, usando a razão. Toda ideia ou argumento precisava ter sua demonstração. Ou pelo raciocínio lógico, ou, melhor ainda, pela prova empírica, dos fatos concretos. Você tinha que provar o que estava afirmando, sem apelar pela crença, pela superstição.
– Ué, opinião não conta? E a liberdade de expressão? Sua realidade é diferente da minha, você tem que respeitar minha opinião.
– Você tem que provar que o que está falando tem lógica, e principalmente se os fatos comprovam o que está dizendo. Senão vira Fake News. Baboseiras que aparecem no WhatsApp, no Instagram, TikTok e por aí vai.
– Então desde o Renascimento havia esse combate às Fake News?
– Guardando as proporções, sim. E por isso muita gente se incomodou.
– Então essa resistência à Ciência já havia antes?
– Isso, retomou Jessé. Se os ultraconservadores, radicais de extrema direita de hoje vivessem naquela época, seriam contra o racionalismo, a ciência, o empirismo, o humanismo. Do mesmo jeito que são hoje contra as teses que comprovam o aquecimento global, a eficácia das vacinas etc.
– Uai, então estamos andando de marcha à ré na História?
– Exatamente, estamos recuando no tempo, em pleno século XXI, quando deveríamos avançar.
– Nos últimos cinto séculos, pelo menos, os ultraconservadores têm desejado sua revanche. Querem a desforra contra a ciência, o humanismo, os progressos da ciência e da sociedade, para voltar de alguma maneira às superstições da Idade Média. Os que hoje são contra a ciência, as conquistas dos direitos humanos e por aí vai, são herdeiros do mesmo pensamento anti-renascimento e anti-progresso social. Tudo igual, nada muda.
– Exato, nada muda, tudo é igual, de um lado, os que querem avançar, e de outro, os que têm o freio de mão e querem a marcha à ré, completou Juca, o mecânico do bairro, com uma analogia que ele dominava. Tem muito parafuso solto por aí…
– Nos séculos seguintes, prosseguiu Jessé, as burguesias de alguns países da Europa começaram a enfrentar a nobreza, os reis e a igreja e lutar pelos seus direitos. Foram os movimentos pelos direitos civis na Inglaterra e na França, pela limitação dos superpoderes dos nobres e reis, e a liberdade de pensamento em relação à igreja, e pelo estabelecimento de constituições. Escritas, de preferência, que é para ninguém ter dúvida.
– Os reis e os grãfinos vestidos cheios de frufrus devem ter ficado putos, alguém comentou.
– E os padres também, devem ter infernizado todo mundo, outro completou.
– Exatamente! Teve um monte de revolução, lutas, guerras, massacres, assassinatos, porque ninguém ia querer perder tanto poder barato, assim, dar de mão beijada para os novos ricos burgueses.
– Isso mesmo, retomou Jessé. Tudo isso questionava as bases de uma sociedade estática, medrosa, sem possibilidade de mudanças de classe social.
– Muita gente foi para a fogueira por causa disso, não é? Cientistas, pensadores, a inquisição contra judeus, guerras de religião.
– Isso, continuou Jessé. E insistiu: O que hoje chamamos de ultra-direita, naquela época, seriam os que eram contra essas mudanças todas. Contra as liberdades civis, a democracia, os avanços da ciência. A posição e a reação eram a mesma de hoje, séculos depois. Mudam-se os tempos da História, mas os radicais da ultra-direita são iguais, em sua resistência aos avanços sociais, ao conhecimento científico, às liberdades sociais e à democracia.
– E a Revolução Francesa?
– Essa foi tão importante, que mudou o tempo da História. Saímos da mera “idade moderna” e entramos na “idade contemporânea”. A situação ficou tão radical, que o povo se juntou à burguesia para expulsar os nobres e reis, e acabar com os superpoderes da igreja. Foi um movimento de radicalização extrema, com guilhotinas e guerras. Mas não tudo só destruição, nem brutalidade. A Revolução foi construída intelectualmente pelo chamado Iluminismo.
– Eita, isso é muito legal, comentou outra estudante assídua das palestras do Jessé.
– O pensamento iluminista, da ilustração, foi o resultado da fina flor de filósofos, cientistas, intelectuais, que pensaram a humanidade com grandeza, sentido de justiça, de progresso para o bem de todos. Viam a História como marcha para o aperfeiçoamento dos homens e da sociedade, inclusive da política e das instituições. Mas para isso era necessário limitar o poder dos poderosos, dividir o poder em funções e equilibrá-los, com balanços e contrapesos. Daí surgiram a declaração universal dos direitos do homem, a divisão de poderes entre executivo, legislativo e judiciário. O critério era a razão e o bem de todos, não os privilégios de classe.
– Isso sim, é uma revolução. Mas muita radicalização, a galera foi guilhotinada etc.
– Sim, do mesmo jeito que hoje o pessoal tem medo do comunismo, naquela época os privilegiados tinham medo daquelas ideias de libertação, de luta popular pelos direitos. É esse meu ponto, insistiu Jessé. Os ultraconservadores de hoje seriam os mesmos que naquela época foram contra esses avanços. Mesma coisa.
– As ideias iluministas foram difundidas por Napoleão?
– Sim, os valores e ideias iluministas da Revolução Francesa foram disseminados pela Europa e pelas Américas, inclusive por meio das guerras napoleônicas. Daí surgiram a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, a divisão do poder entre executivo, legislativo e judiciário, com seus pesos e contrapesos, as liberdades civis e econômicas. As potências imperiais da Europa continental, chefiadas por dinastias absolutistas, pela nobreza e pela igreja, se sentiram profundamente ameaçadas pelo avanço das tropas napoleônicas e suas ideias, inclusive seus códigos e leis. A Inglaterra, embora fosse liberal, apoiou essas forças retrógradas para conter os avanços da França napoleônica, sua rival.
– É isso que chamam de restauração?
– Isso mesmo, a restauração conservadora do chamado concerto europeu, nascido do Congresso de Viena. Muitos dos ideais iluministas e napoleônicos foram sufocados, mas por poucas décadas. A reação às ideias progressistas, inclusive de movimentos nacionais. Vale lembrar que esses movimentos populares nacionalistas e românticos foram a ideologia que gerou independências e novos países, especialmente nas Américas: Estados Unidos, Haiti, países da América Latina, e nosso Brasil!
– A restauração durou poucas décadas?
– Sim, ao longo do século XIX, muitos movimentos populares e democráticos tomaram conta da Europa. Muitos governos absolutistas caíram, as liberdades democráticas começaram a se impor pelas revoluções.
– Mas com muita reação das forças convervadoras, não é?
– Claro! As mesmas forças retrógradas que lutaram contra os avanços do liberalismo, da democracia e dos direitos têm muita semelhança com o pensamento e os métodos do fascismo, do século XX, e da ultra-direita radical do século XXI.
– Por que você diz que são os mesmos pensamentos, o dos extremistas de direita de hoje e os de vários séculos atrás?
– As características da ultra-direita são as mesmas ao longo dos séculos. Todas partem do estímulo a sentimentos de medo, ódio e ressentimento. Todas se apoiam em uma visão distorcida e parcial da realidade, mesquinha, preconceituosa, que divide a humanidade entre nós, os superiores, bons, certos, justos e vítimas; e os outros, inferiores, desumanos, bárbaros, maus, violentos, que não têm salvação senão pela submissão e aniquilação. O discurso é sempre de ódio e vingança. A violência é o único método de imposição de visão do mundo e da sociedade. Diante da incapacidade de percepção da realidade complexa, o resultado é uma visão binária, reducionista, na qual o maniqueísmo é extremo. Se algo não se amolda à sua visão mesquinha e atrofiada do mundo, aplica-se o negacionismo da realidade. Se as evidências sao irrefutáveis, recorre-se à perseguição às instituições e personalidades, cancelamento, extirpação, neutralização, destruição dos inimigos de sua cosmovisão. Também decorrência disso é uma visão de mundo informada por teorias da conspiração, na qual os inimigos sorrateiramente buscam eludir a verdade e impor uma condição vista como ilegítima, e por isso têm que ser eliminados.
– Isso tanto nas sociedades ricas quanto nas periféricas?
– Sim, mas no caso destas, há complementos: um desprezo maior pela pobreza das classes populares, e a subserviência às grandes potências mundiais.
– Não me sai da cabeça aquela bandeira americana na avenida Paulista, em plena comemoração do 7 de setembro.
– É o cúmulo do viralatismo da elite escrota e dos pobres de direita. Sempre entreguistas, querendo se dar bem à custa de todo o país.
– Mas o autoritarismo não é só característica da ultradireita. Também há uma esquerda extremista e autoritária, antidemocrática. Veja Stalin, veja Fidel, veja os autoritários de esquerda na América Latina.
– Muito boa observação, animou-se Jessé. Isso me leva a outro ponto: essa coisa de esquerda-direita tem que ser superada. Ela é de um reducionismo grotesco. Vamos pensar em termos geométricos. Esquerda e direita são apenas referências de um único plano. Imagine uma reta. Prá um lado ou para o outro. É ridículo. Uma visão unidimensional para representar o universo político? Cadê as outras dimensões da sociedade e da política? Cadê a métrica do autoritarismo, do desenvolvimento, da justiça social e do meio ambiente?
– Eita, o cara complicou demais, agora.
– OK, Jessé. Tá bom por hoje. Vamos comer a feijoada, disse o dono do bar. Outro dia você desenvolve essa ideia, que me parece legal.
Todos concordaram. Era hora da feijoada com caipirinha. E samba. As filosofências ficariam para outro dia.
ESQUERDA E DIREITA, CONCEITOS INSUFICIENTES PARA UMA REALIDADE MULTIDIMENSIONAL
A noite estava quente, e muitos se juntaram para tomar uma cerveja no bar onde o Jessé fazia suas filosofências. Naquela noite, pediram a ele que voltasse ao tema da esquerda contra direita.
Ele começou explicando a origem da coisa, que remetia à forma como se posicionaram na Assembleia Legislativa da França do final do século XVIII, no contexto da Revolução Francesa. Os conservadores se sentavam nas cadeiras da direita do salão, e os revolucionários, nas da esquerda. Aí nasceu a tradição, quase como uma toponímia de salão com significado político, de dizer que quem se posiciona à direita é conservador, e à esquerda, progressista.
Alguém lembrou de outra toponímia na origem da palavra “fazer greve”, simplesmente reunir-se na praia de Grève, ao lado da Prefeitura Municipal de Paris, à beira do Sena. Enfim, curiosidades da história.
Voltando ao que interessa. Jessé questionava, dizendo que a realidade era muito mais complexa do que esse reducionismo unilinear direita-esquerda. Ele passou a usar as imagens da geometria dos múltiplos planos e dos gráficos para dizer que essa polarização direita-esquerda é paralisante, reducionista, e além de não explicar, complica e colapsa.
– Essa coisa de esquerda-direita tem que ser superada, afirmou Jessé, categórico. Ela é um reducionismo grotesco, neandertal, é muito insuficiente para programas políticos de sociedades cada vez mais complexas. Ela serve para mobilizar massas, mas chegamos a um ponto em que ela paralisa qualquer discussão, faz colapsar qualquer possibilidade de diálogo, como vemos atualmente, nesse momento de extrema polarização.
Jessé pôs sobre a mesa o quadro negro do bar, onde se colocavam os preços dos itens, emprestada pelo próprio dono do bar. Nela desenhou – para explicar algumas coisas complicadas, só desenhando, mesmo – uma linha, um quadrado e um cubo. Sem powerpoint nem nada, na base do quadro e do giz, mesmo. Isso aumentou a curiosidade da galera, que ouvia com atenção.
– Vamos pensar em termos geométricos – disse, traçando uma linha no quadro. Esquerda e direita são apenas referências de um único plano. Vejam esta reta. Prá um lado ou para o outro. Não tem prá cima ou prá baixo, para fora ou dentro. Somente um único plano, nada mais.
– Que é que isso tem a ver com a política e a sociedade?
– É ridículo! Apenas uma linha, uma visão unidimensional para representar o universo político, social, econômico? A realidade é muitíssimo mais complexa do que uma reta, onde só se pode ir para um lado ou para o outro, direita e esquerda, concordam?
– Sim! Todos concordavam.
– Imagine que isso fosse um plano de metrô. Só dá para ir para um lado ou para outro, talvez com algumas paradas no meio. E o restante da cidade? Nosso espectro político somente capta essa possibilidade. Apenas uma dimensão. Mas se ampliarmos de uma reta para um quadrado, por exemplo, teremos duas dimensões. Comprimento e largura. Dá para percorrer outros espaços, o que não seria possível apenas em uma reta.
– Isso.
– E se traçarmos outra reta para cima, temos um plano em três dimensões, um cubo, com altura e profundidade, o que permite muito mais possibilidades de posicionamento. Correto?
– Perfeito! Claro! Mas o que isso tem a ver com a política, esquerda versus direita?
– Cadê as outras dimensões da sociedade, da política, da economia, do meio ambiente, dos direitos humanos, da ética e da moral? Nada disso cabe numa linha só.
– Muito bem… E então, como fazer?
– Proponho ampliar essa referência esdrúxula, grotesca e canhestra de uma única linha e um único plano, para algo pelo menos tridimensional, para inserir outras métricas.
Alguns tiveram que consultar nos celulares os significados de algumas das novas palavras do Jessé, que continuava a desenhar no quadro com o giz. Desenhou 3 eixos, representando 3 dimensões.
– Em vez de uma única dimensão política, direita e esquerda, temos que colocar outras métricas. Pelo menos duas dimensões adicionais, que seriam dois novos eixos: o primeiro seria o da liberdade com justiça e inclusão social; o segundo, o do desenvolvimento humano e sustentável.
– Para quê?
– Para que o que se chama de direita e esquerda possa ser avaliado em termos tanto de liberdade e justiça versus autoritarismo; quanto de desenvolvimento ambientalmente sustentável versus pobreza e degradação ambiental.
– Ainda não estou entendendo, mas sinto que a ideia é boa.
Jessé colocou alguns pontos no gráfico tridimensional, para explicar.
– Assim, por exemplo, um sistema pode ser de direita, autoritário, que gera pobreza e degradação ambiental. Péssimo cenário.
– Sem dúvida! O pior.
Jessé colocou outro ponto no gráfico, no eixo oposto.
– Mas também pode ser de esquerda, autoritário, que gera pobreza e degradação ambiental.
– Então, alguém comentou, ser de direita ou esquerda não é bom ou mau em si, mas depende se gera liberdade, riqueza, desenvolvimento e preserva o meio ambiente, é isso?
– Exato, há várias combinações possíveis. Pode ser de direita ou de esquerda e respeitar liberdades e desenvolver; pode ser de direita ou de esquerda, não respeitar liberdades mas gerar crescimento econômico com destruição ambiental; pode ser tanto direita quanto esquerda autoritária e destruidora; pode ser de direita ou de esquerda e privar de liberdades, mas gerar crescimento econômico destruindo o meio ambiente; de direita ou esquerda dando liberdade, mas sem crescimento econômico, e por aí vai…
– Ou seja, direita e esquerda são apenas referências políticas, mas os efeitos sociais e ambientais não são capturados nessa métrica, comentou um senhor grisalho.
– Verdade, direita e esquerda são insuficientes. Temos que considerar outros referenciais para nossa sociedade complexa, completou outro.
– Exatamente. O importante seria, então, construir um modelo mais sofisticado e complexo que medisse e “plotasse” num gráfico tridimensional o sucesso ou o fracasso das políticas em termos de liberdade, justiça, desenvolvimento socioeconômico e preservação ambiental, concluiu, brilhante, uma jovem universitária.
Jessé sorriu. Estava realizado e triunfante, orgulhoso de sua plateia. Haviam entendido sua nova proposta teórica. Direita e esquerda eram grotescamente insuficientes como referências para a sociedade do século XXI. Era necessário construir novos modelos gráficos, inserindo novos dados sociopolíticos, econômicos e ambientais, para avaliar o que seria ou não desejável. O importante era a resposta às necessidades de desenvolvimento humano, com respeito à justiça social e ao meio ambiente, e não a polarização paralisante esquerda-direita. Esse novo modelo, se alguém se dispusesse a estudar e desenvolver, superaria a paralização e o colapso do confronto esquerda-direita, e geraria uma nova dinâmica de mobilização e debate.
– Muito bem a todos, fico feliz. Vamos pensar nesse modelo de desenvolvimento multidimensional, superando a polarização estanque direita-esquerda, que só faz paralisar. E bloquear todo o diálogo, como vemos hoje. Inclusive causando mais violência.
E assim terminou a preleção da noite no bar. Já era tarde, todos voltaram a suas casas. Jessé ficou ainda na mesa, até o bar fechar, olhando o quadro negro na mão, ainda degustando de sua própria palestra, junto com uns goles de cerveja. Lamentou que, apesar de profeta urbano periférico, não tinha competência acadêmica para desenvolver teórica e empiricamente sua intuição. Em seu devaneio, imaginou-se fazendo conferências e dando entrevistas. Ficou sonhando que algum dos discípulos que o assistiam na calçada mordesse a isca e desenvolvesse essas ideias, que lançava como garrafas com mensagens ao mar…
O CAPITÃO TOLETE NA MITOLOGIA DE BRUZUNDANGA
– Hoje vou falar de mitologia, começou Jessé. Vou lhes falar de um país chamado Bruzundanga, uma república longínqua deliciosamente retratada por Lima Barreto. Bruzundanga é um país riquíssimo em termos de recursos naturais, e também de cultura. Tem um povo maravilhoso, mas uma elite horrível. E uma mitologia complexa, resultado do sincretismo de panteões da Grécia, do santuário católico, das matrizes afro-ameríndias e de uma estranhíssima cultura política. Um dos mitos mais curiosos do olimpo bruzundanguense é o Capitão Tolete.
– Capitão Tolete? Todos caíram na gargalhada. Tá de sacanagem!
– Sério, prosseguiu Jessé, professoralmente. Ao contrário de Athenas, que nasceu da cabeça de Zeus, o Capitão Tolete nasceu da cloaca conjunta de um pool de divindades apócrifas. Daí seu nome.
Mais gargalhadas.
– Seus superpoderes consistem em gerar e multiplicar os elementos mais abjetos e nojentos da psiquê humana, aqueles itens mais pesados e gosmentos do fundo da caixa de Pandora, que se grudaram na cara e no peito de diversas civilizações e se manifestaram de forma particular em Bruzundanga. Saíram do esgoto da humanidade e da alma. E produziram esse mito abjeto. Encantada com seus superpoderes, que lhes permitia externar sem vergonha ou escrúpulos sentimentos, desejos e opiniões absurdas e detestáveis – que, ao contrário, passaram a ser expostas com orgulho –, boa parte dos habitantes de Bruzundanga elevou o Capitão Tolete à categoria de mito.
– Caraca!
– Mais que mito, o Capitão Tolete era um avatar do messias olímpico. Reunia os títulos de mito e messias, para delírio de seus fanáticos seguidores. Em honra a esse mito-messias, dançaram nas ruas uma coreografia ridícula, outros faziam gestos imitando armas com os dedos, cidadãos de bem, especialmente os mais religiosos, que rezavam para pneus e ETs, passaram a defender de forma alucinada a violência, o racismo, a tortura, o armamentismo, a censura, o legado da ditadura militar sanguinária, os ataques à cultura e à educação, o desmatamento, a invasão de terras indígenas e a contaminação da lavoura com agrotóxicos cancerígenos.
– Que maluquice! Não é possível.
– Esse mito-messias despertava nas pessoas os piores sentimentos: medo, ódio, preconceito, ressentimento, intolerância, radicalismo. Por causa dele, famílias brigaram e não se falaram mais, amigos romperam relacionamentos, houve crimes de intolerância, aumentou muito a posse de armas e a violência verbal e física.
– Que horror!
– E não parou por aí, retomou Jessé. Durante a mais severa epidemia do século, seguindo as ordens do mito, deixaram morrer centenas de milhares do povo, para não tomarem uma vacina que os imunizaria. “E daí, diziam, não somos coveiros”, “deixem de mimimi”, eram mantras repetidos pelo líder e seus fieis do espectro mais psicopata da seita.
– Revoltante!, indignaram-se vários. Houve revolta contra ele?
– Não, pior: houve revolta a favor dele, respondeu Jessé. Seus fieis destruíram prédios do governo de Bruzundanga, inconformados com o resultado da escolha do povo daquele país, que teve a heresia de não aceitar o mito como seu governante. Quebraram tudo, defecaram – ato ritual da denominação fiel ao Capitão –, queriam explodir aeroporto, bloquear estradas com caminhões, tudo para decretar a liberdade de impor o autoritarismo de sua teogonia caótica, contanto que o mito continuasse mandando.
– Esse povo é doido?
– Mas se diziam patriotas. Desfilavam nas ruas com bandeiras de Bruzundanga, que passaram a ser vistas como símbolos de um radicalismo burro.
– Patriotas? Defendiam o país contra inimigos externos?
– O patriotismo dos seguidores fanáticos do mito era bastante peculiar. Não tinha compromisso com o desenvolvimento e o bem-estar da nação, mas com a submissão ao Império de SuGloM.
– Império de SuGloM?
– SuGloM, a Superpotência Global Messiânica. O Império de SuGloM tinha por prática invadir países pobres e colocar no seu comando títeres corruptos alinhados com seus interesses políticos, econômicos e comerciais – fossem eles petróleo, bananas ou diamantes. Para justificar e dissimular seus verdadeiros propósitos, agentes de SuGloM convenceram todo mundo de que estavam apenas expandindo a democracia e a liberdade de mercado, para a salvação da humanidade. Essa senha lhes dava autorização para derrubar governos, massacrar líderes populares, estabelecer ditaduras fantoches e fazer guerras e invasões.
– Mas o pessoal de Bruzundanga é contra, não é?
– Ao contrário, muita gente apoia prá valer. Querem que Bruzundanga seja um satélite submisso ao Império de SuGloM. Numa das manifestações mais emblemáticas desse patriotismo bizarro, fanáticos seguidores do Capitão Tolete desfraldaram uma imensa bandeira de SuGloM no desfile da data de independência nacional de Bruzundanga (outro fato mitológico, mas fica para outra oportunidade) em pleno centro de uma de suas principais cidades, e todos bateram continência, a começar pelo próprio Capitão.
– E como são esses militantes patriotas fanáticos do Capitão Tolete, esse mito de Bruzundanga?
– Eles são incultos, bregas, detestam a educação e perseguem a cultura, intelectuais e artistas, mas são monstros nas redes sociais. Seguem à risca um punhado de influenciadores e haters, acreditam e disseminam fake news, e tudo o que postarem, sem nenhum cuidado na verificação da verdade dos fatos. Vivem na era da pós-verdade, onde o que existe é o que eu acredito, e o que não bate com o que eu penso simplesmente não existe. São negacionistas fanáticos.
– Eita, isso é bem perigoso. E como eles produzem conteúdo, e como interagem nessas redes sociais?
– Boa parte da produção de conteúdo é feita naquelas horas do banheiro, sabe? Seus influenciadores digitais e militantes do mau ficam concentrados em duas tarefas. A primeira é a que vocês imaginam mesmo, no banheiro, que todo mundo faz. A segunda tem o mesmo conteúdo da primeira, mas é feita digitalmente. Ou seja, o que sai por um lado, sai também pelo outro, material da mesma qualidade, na forma de ideias, postagens e comentários.
Gargalhada geral. Todos haviam entendido.
– Claro, é uma homenagem ao nome do Capitão…
Mais risos.
– Vocês já ouviram falar do índice da pizza?, inquiriu Jessé.
– Nunca…
– Sempre que alguma crise está para acontecer, aumenta o número de encomendas de pizzas ao redor do Pentágono ou da Casa Branca. A galera sabe que vai fazer serão extra, sem tempo para sair, e encomenda muito mais pizzas do que a média.
– Interessante… Mas o que isso tem a ver com o Capitão Tolete?
– Pois é, na época dele inventaram o índice do papel higiênico.
– Como é que é??
– Cada vez que havia reunião de governo para lançar alguma política, notava-se um aumento vertiginoso das compras de papel higiênico nos supermercados de Bruzundanga.
Vários entenderam e riram, outros demoraram a perceber a correlação.
– E quando havia reunião dos pensadores e formuladores das estratégias do governo – ou seja, somente discussão de ideias – aumentavam também, exponencialmente, as vendas dos purificadores de ar. Os bairros ao redor do palácio presidencial de Bruzundanga ficavam irrespiráveis…