Escritos em Lisboa
Sumário
Torre do Tombo – Carta de Pero Vaz de Caminha
Aniversário do jornal Público Brasil
Torre do Tombo – Carta de Pero Vaz de Caminha
[1] George Orwell disse, em seu 1984, que quem controla o passado controla o futuro, e quem controla o presente, controla o passado. Ao afirmar isso, sublinhou a necessidade do conhecimento e do controle sobre sua própria História, sobre as narrativas que conformam a identidade de um povo, de uma nação. Daí a importância dos arquivos históricos e das fontes documentais.
O Arquivo Nacional da Torre do Tombo guarda fontes documentais, desde o século IX, da extraordinária saga histórica portuguesa, em particular os registros mais importantes do Brasil colonial.
Além da Carta de Caminha, estão guardadas centenas de documentos sobre o processos de Inquisição, que forçaram o deslocamento de milhares de judeus e cristãos-novos para o Brasil, em particular para o Nordeste, minha região. A contribuição étnica e cultural semítica é parte importante não apenas da demografia da colônia, mas da complexa civilização brasileira, unindo-se a outras matrizes indígenas, portuguesas e africanas.
A “carta de achamento” do Brasil, reconhecida pela UNESCO como “memória do mundo”, é o documento fundacional de nossa História. Escrita em 1500, foi redescoberta dois séculos depois de seu arquivamento.
Além de seu evidente valor histórico e simbólico, desejo também destacar a importância literária da Carta de Caminha.
A literatura portuguesa em 1500 se situava na transição dos estilos da Idade Média para o Renascimento, no âmbito do classicismo e do Quinhentismo. Além das novelas de cavalaria medieval, estão presentes a literatura religiosa jesuítica, o magistral teatro de Gil Vicente, com sua crítica social, política e dos costumes, e as crônicas de viagem, que configuram prosa de informação de extraordinário valor.
Nesse contexto, a Carta de Caminha é uma obra-prima, dirigida a El-Rei D. Manuel. Sua leitura é muito agradável, fluida, cativante, misteriosa. Seu ritmo e sua didática prendem a atenção do leitor.
Seria interessante confrontá-la com o estilo e as informações de registros anteriores do século XV dos cronistas das navegações pela costa africana que acompanharam Gil Eanes, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e outros bravos heróis da épica expansão marítima portuguesa. Fica aqui, se me permitem a ousadia, uma sugestão de publicação futura: a comparação das prosas dos registros das grandes navegações.
A Carta de Caminha vai além de uma prosa de informação ou de um relatório de viagem. Trata-se de uma peça da literatura científica do Renascimento, por seu estilo objetivo, rico em informações e elementos que hoje chamaríamos de antropológicos. Isso demonstra que o empreendimento dos descobrimentos foi além do comércio e do lucro, mas carregava ciência, tecnologia e humanismo, e se movia pela expansão do conhecimento, da fé e do estabelecimento de pontes inéditas entre versões da humanidade.
Se me permitem prosseguir nessa perspectiva antropológica, e não historiográfica eurocentrista, tradicional e anacrônica, o evento narrado por Pero Vaz de Caminha não foi um descobrimento unidirecional, de uma civilização superior sobre rudimentos humanos de escala inferior. Não apenas o “achamento” de uma “terra nova”, mas um encontro nos dois sentidos, eivado de relativismos.
Como, obviamente, não havia escrita entre os povos originários, não se tem registro documental da impressão causada por esse encontro no Brasil. Povos originários do México, entretanto, ao enxergarem pela primeira vez as caravelas, acreditaram ser grandes pássaros brancos.
Ao centro das velas, não a bandeira de Portugal, com seu escudo de castelos e torres, mas a Cruz, a indicar a natureza do empreendimento – uma associação entre o poder político e a ordem de Cristo, cuja agenda lhe conferia justificativa e legitimidade moral e ideológica.
Gostaria de convidar todos, aqui, para um pequeno exercício de imaginação. Imaginem que um daqueles indígenas brasileiros tivesse a condição de também registrar o “descobrimento”, ou o “achamento”, a partir de sua perspectiva. Como seria o contraponto da Carta de Caminha no olhar daquele escitor indígena? Não uma carta a El-Rei, mas ao cacique tupiniquim, relatando que haviam sido visitados por homens estranhos, brancos, que desembarcavam de grandes pássaros flutuantes vindos do horizonte.
Imaginem uma carta assim:
Primeiro, mandamos oito, depois vinte homens armados com flechas e arcos, para ver aqueles homens estranhos, brancos, com tecidos que cobriam suas vergonhas, que desembarcavam de botes paridos por aqueles grandes pássaros brancos.
Um deles, que se chamava Nicolau Coelho, nos fez sinal para baixarmos as armas. Mesmo desconfiados e assustados, colocamos nossas armas no chão.
Eles nos deram um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que nunca tínhamos visto. O tato suave desses materiais, e suas cores, nos agradaram. Em troca, demos a eles sombreiros com penas de ave e continhas brancas.
Eles estavam deslumbrados com nossa natureza. Ficaram admirados com o tamanho de nossas praias chãs, muito formosas. Diziam que sentiam “muito bons ares”.
Diziam que éramos galantes, pintados, que estávamos nus e éramos inocentes, tínhamos boa pele e excelente saúde. Não entendemos, será que no mundo deles é diferente?
Ficaram muito espantados com nossos enfeites nos narizes, orelhas e bocas.
Mostramos um papagaio, se divertiram muito e levaram um para eles.
Em troca, nos mostraram bichos que nunca tínhamos visto: um carneiro, e umas aves que nos deram medo. Chamavam de galinhas.
Nos mostraram também alimentos que não conhecemos: pão, mel, figos, vinho. Tudo tinha um gosto horrível, provamos, cuspimos e jogamos fora.
Nos deram também água. Tinha um gosto horrível, só serviu para nos lavarmos. Nossas águas são muito mais puras. Por isso, enchemos de água os barris deles, para levarem para o pássaro branco.
Um dos nossos viu uma colar, que eles chamavam de rosário, e ficou com ele.
Outro viu um belíssimo colar dourado do cacique deles, que tinha o nome de Pedro Álvares Cabral. Apontou para o interior, para dizer que tínhamos esse mesmo material, que chamam de ouro.
Nos mostraram uma linda peça de branco reluzente, que chamavam de castiçal de prata. Dissemos que também havia também esse material no interior.
Nos mostraram tapetes de pele muito macia e colorida. Chamavam de alcatifas. Eram tão macios, que alguns dos nossos deitaram e logo dormiram sobre eles.
Depois muitos desses homens desembarcaram e se reuniram para um evento muito solene. Cortaram uma árvore com umas pedras poderosas, que chamavam de ferro, e fizeram uma peça de madeira horizontal e vertical, a que chamaram de Cruz. Um deles, vestido de marrom, e um pouco calvo, que chamavam de Frei, falou muito, e todos ouviram em silêncio. Ficaram emocionados no momento em que levantou um copo dourado para o céu e bebeu, e comeu algo branco e redondo, que parecia um beiju de farinha. Chamaram aquele evento de missa.
Ficamos contentes e começamos a dançar.
Demos a eles camarões e almeijoas.
Deixaram que uns deles, ainda mais estranhos, que chamavam degredados, entrar em nossas aldeias. Não gostamos deles. Mas, no final, alguns desses degredados terminaram ficando, para aprender nossa fala.
Perguntavam se tínhamos o que chamavam de casas. Explicamos que vivíamos em choupanas, mas depois mostramos nossas grandes casas, do tamanho daqueles pássaros brancos, de madeira e palha, uma só peça, onde morávamos todos.
Diziam que éramos bons e de simplicidade, que vivíamos em estado de inocência, e que poderíamos ser logo cristãos, mas não entendemos o sentido. Diziam que não temos, nem entendemos nenhuma crença, e que precisávamos crer no que chamavam de “santa fé católica”.
Eles não conhecem o quanto acreditamos e respeitamos a natureza, que é tudo, e que está em nós. Por isso, nosso pajé Babau, ancião de mais de cinqüenta anos, explicou nossa crença. Como não entendiam, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou para o Céu, para dizer que temos um Ser Superior, que está na Natureza, e em nós, e que nos faz bem.
Outro dia, um deles, de nome Pero Vaz, que escrevia tudo em um tecido que depois nos explicaram que era papel, anotou que não tínhamos lavoura, nem criação de bichos chamados de vaca, cabra, ovelha, galinha. Disse que só comíamos inhame, sementes e frutos. Mas mesmo assim éramos fortes e rijos, mais que eles, que se alimentam de trigo e legumes.
Mostrávamos nossa alegria com danças e bailes ao som de tamboris.
Cresciam a amizade e a confiança entre nós. Já nos misturávamos, não levávamos nossos arcos. Mas ouvi aquele Pero Vaz comentar que parecia que éramos mais amigos deles que eles nossos.
Alguns dos nossos, mais curiosos e corajosos, entraram nos pássaros brancos pousados no mar, que chamavam de naus. Depois, ajudamos a levar material e a montar o que queriam.
Pero Vaz nos falou que ia dizer ao grande cacique dele, que chamava de El-Rei, que o melhor fruto que se pode tirar desse encontro é salvar nossa gente. Penso a mesma coisa: o melhor que podemos fazer para esse povo estranho é salvar a gente deles, ensinando como se deve viver na natureza, na simplicidade, na inocência, na comunidade.
Imagino que a carta de nosso “Caminha tupiniquim” poderia conter esses elementos.
Pero Vaz de Caminha morreu em Calicute, no seguimento da mesma missão de Cabral, poucos meses depois, em dezembro de 1500.
Deixou-nos o legado do encontro de duas variantes de humanidade, a renascentista e tecnológica, e a que transitava para a neolítica, anterior à idade dos metais e da agricultura sedentária.
Naquele momento histórico, o mundo antes dividido entre norte e sul, por paralelos e latitudes negociadas entre as superpotências marítimas Portugal e Espanha, com interesses conflitantes na África, negociara, não mais paralelos, mas meridianos, dividindo o mundo entre Leste e Oeste.
Uma humanidade que vê o sol se pôr no mar encontrou uma humanidade que via o sol nascer na praia. Desse encontro, o Brasil recebeu genética, tecnologias, alimentos, animais, língua, religião, sociedade e governo; e entregou madeira, ouro, prata, pedras preciosas, açúcar, cacau, algodão, café, sangue e muita riqueza.
Público Brasil
[2] Os imigrantes brasileiros formam uma comunidade perfeitamente integrada, produtiva, que paga seus impostos e contribuições sociais, culturalmente imbricada, vibrante, dinâmica, trazendo uma riqueza e uma alegria muito particulares ao mundo português, do qual fazemos parte como pólo dinâmico da lusofonia.
Comemoramos, há poucos dias, o bicentenário do reconhecimento da independência do Brasil por Portugal. Mas, evidentemente, nossa história, nossas relações humanas de fraternidade são consideravelmente mais antigas e profundas.
Seria o cioso discorrer aqui sobre a história, as relações econômico-comerciais, culturais, acadêmicas, tecnológicas. Todos nós temos a exata dimensão da importância e do exemplo para o mundo que as relações Brasil-Portugal trazem.
Basta ver o mapa da América Latina para perceber como a América portuguesa logrou consolidar-se como um único país, contrastando com a fragmentação política da América espanhola. Isso é o resultado de processos distintos, mas complementares, de centralização político-administrativa e flexibilidade cultural. Gilberto Freyre identifica nisso um dos traços brasileiros herdados de Portugal, ao que chama de equilíbrio de antagonismos.
Desse leque todo de temas, gostaria apenas de ressaltar o aspecto linguístico. Somos, hoje, 213 milhões de lusófonos no Brasil, em um universo de mais de 260 milhões de falantes de português no mundo, o que equivale a mais de 80 %.
Às vezes algumas crianças brasileiras que estudam em Portugal chegam em casa tristes porque na escola professores e coleguinhas dizem que elas falam português errado.
Eça de Queiroz dizia que falamos um português com açúcar. Podemos acrescentar outros ingredientes ao cadeirão de nosso português. Além de açúcar, pimenta da África, ervas e frutas indígenas, e tantas outras contribuições que enriquecem o patrimônio imaterial dessa nossa pátria grande que é a língua portuguesa.
Há uma corrente, na antropologia, chamada de difusionismo. Ela mostra como traços de uma cultura central se mantiveram ao longo do tempo nos círculos externos da difusão de um pólo difusor. Nesse sentido, o português que nós falamos no Brasil hoje é muito semelhante, com suas vogais abertas e seu ritmo e suas expressões, ao português falado séculos atrás, por exemplo, no Alentejo e no norte de Portugal. O mesmo acontece se compararmos o espanhol falado na América Latina ou o québécois em relação ao espanhol e ao francês modernos metropolitanos.
Desejo terminar mencionando três autores brasileiros, que discorrem sobre um tema comum.
O primeiro é o embaixador Alberto da Costa e Silva, ex embaixador em Portugal. Ele escreveu sobre um rio chamado Atlântico. Em sua visão, o Atlântico não é um apenas um oceano que separa, mas um rio que une duas margens, Brasil e Portugal
O segundo autor é Guimarães Rosa, também embaixador. Uma de suas instigantes crônicas se chama a terceira margem do rio, que conta a história de um pai que abandona a sua família numa margem em um bote, mas não chega na margem oposta, passa a viver simplesmente no meio do rio.
Por último, Clarice Lispector, que escreveu que vivemos um tempo de travessia. Se não ousarmos fazê-la, teremos sempre ficado à margem de nós mesmos.
Brasil e Portugal têm a ousadia em seu DNA. Precisamos continuar com coragem e determinação, fiéis aos nossos valores civilizacionais, para que não fiquemos à margem de nós mesmos, de nosso potencial ou do que poderíamos ter sido. Parabéns ao público Brasil.
[1] Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 21/10/2025.
[2] Lisboa, primeiro aniversário do Público Brasil, 6/9/2025.